A morte de ascensorista

Dona Josefa com seus 48 anos já apresentava certo cansaço – algumas marcas de tempo, como manchas de pele nas mãos, pés de galinha no canto dos olhos e ombros levemente curvados, como quem já carregou muito peso nas costas. Não que sua vida tenho sido muito árdua, afinal sempre desejou mais trabalho do que arranjou, e sim pela responsabilidade de educar Zequinha, seu único filho, em um bairro tomado pelo tráfico de drogas, com festas provocantes e pequenos meliantes praticantes de furtos em áreas nobres da cidade de São Paulo.

Carinhosamente tratada por Zéfa, era pessoa muito querida na comunidade, muito atuante na associação, sempre que sem trabalho – o que acontecia com bastante frequência – se voluntariava para cuidar das criancinhas da creche, ou mesmo para distribuir cestas básicas advindas da paróquia vizinha.

O fato é que Dona Zéfa, já tivera um bom emprego. Era ascensorista em um belo e alto edifício do centro da cidade. Trabalhou lá dos 23 aos 38 anos. Apesar do salário não ser tão bom assim, tinha carteira assinada, plano de saúde, vale transporte, férias, décimo terceiro salário.

Isso foi na época em que pegou Zequinha para criar. Sim, Zequinha era o, então, mais novo filho de sua prima, Clarinha, que morava no interior. Ela já contava com 5 filhos e, sem emprego, não tinha condições de criá-los. Foi quando Dona Zéfa, grande apaixonada por Zequinha desde seu nascimento, o trouxe para Caieiras. Zequinha era bem pequenino, quase um bebê, e como correspondia o amor de Dona Zéfa, e agora não mais concorria com outros 4 irmãos, não teve maiores problemas com adaptação.

Mas Zéfa andava muito cabisbaixa. Não encontrava emprego havia 10 anos. Participou de alguns processos seletivos, todos eles sem êxito. Ficou se virando nos bicos – uma faxina aqui outra ali, cuidou de um idoso nos seus últimos meses de vida, costurou pra fora, fez doces e salgados para aniversários. Mas nos últimos meses poucas oportunidades de emprego surgiram.

Seu marido, Antônio, muito trabalhador, ajudou bastante com a formação do menino. Sempre cuidaram de colocá-lo em boas – porém pagas – escolas. Não era fácil, as mensalidades consumiam grande parte do orçamento. Mas graças a esse esforço, conseguiram que Zequinha passasse em uma universidade estadual, no interior do estado. Os bicos de Zéfa ajudavam no orçamento, mas não eram constantes ou grandes o suficiente – isso vinha entristecendo-a – afetava em muito sua autoestima, ela já achava que não prestava mais para nada, que talvez já estivesse velha ou mesmo que tinha algum grande defeito e por ele desesperadamente procurava.

O impacto chegou à relação do casal, principalmente nos últimos meses, quando Zéfa se tornou mais depressiva, passava o dia ou chorando ou dormindo. Nem mais na associação queria ir. Entrou em um ciclo vicioso pois, se não ia na associação não encontrava bicos para fazer ou mesmo atividades voluntárias e só se afundava ainda mais na tristeza. A saída de Zequinha para o interior agravou ainda mais a situação.

Antônio era vigia em uma empresa de segurança na capital. Trabalhava em esquema 12 por 36, o que permitia alguns bicos – acabando então por trabalhar 12 por 12. Mas isso não mais o incomodava, seu corpo já acostumara – nada que grandes doses de café não resolvessem.

Numa bela manhã de outono, mais parecida com inverno – tamanho frio que fazia, Dona Zéfa saiu para uma entrevista de emprego. Foi uma vizinha que levou seu currículo para uma amiga que falara sobre uma vaga em sua empresa. Não sabia ao certo sobre a vaga, pensou que seria para faxina, limpeza ou algo assim. Não estava muito animada, afinal já havia levado um bocado de “nãos”.

Antonio, que naquela época trabalhava em período noturno, acabou por encontrá-la de saída, se cumprimentaram e despediram com um beijo, muito rapidamente, nem deu para dar recomendações, palavras de incentivo ou mesmo externar seu desejo de boa sorte.

Antonio estava incomodado, pressentia algo – temia pelo pior -, não sabia se era pelos resultados negativos das entrevistas anteriores, ou se não havia desejado-lhe boa sorte a contento, ou se não orava o suficiente por sua amásia, ou se algo horrível fosse acontecer. Mas o fato é que ficara uma angústia em seu coração.

Comeu algo, sentou-se à frente da televisão, assistiu aos noticiários matutinos, riu-se da desgraça do time rival, entristeceu-se com as informações de violência e corrupção, entediou-se com os programas matutinos – que só tratam de assunto de mulher -, irritou-se com tanto papo furado e fofocas e foi se deitar. Demorou, mas dormiu.

Acordou preocupado, já passava das 16 horas e não fora acordado com o tradicional, porém frio, beijo de Zéfa – beijo esse que um dia foi quente, apesar de singelo. Sentou-se na cama e começou a pensar sobre seus pressentimentos anteriores. Balançou a cabeça negativamente, como quem tenta expulsar com um sacolejo os pensamentos impertinentes. Checou o celular para ver se havia alguma ligação perdida, ligou para ela e: caixa postal. Levantou-se e foi preparar algo para comer. Comeu, tomou banho e, mais preocupado ainda, pois já passava das 18 horas, saiu para assumir seu posto.

Que dia de trabalho foi aquele. A hora não passava. Ligou mais de dez vezes para Zéfa, mas o celular insistia em dar com a caixa postal. Deixou uma dúzia de recados. Não largava seu celular nem por um minuto, esperando que ela retornasse as ligações. Quando enfim deu a hora, saiu correndo para casa. Desesperado para encontrá-la.

Ainda de fora, olhando por sobre o portão pode ver nenhuma movimentação. As janelas fechadas, as luzes – ainda que de manhã – apagadas. Entrou pelo corredorzinho lateral, que dava acesso a sua e outras 2 casas de fundo e não sentiu o tradicional cheirinho de café. A porta, a diante e a direita, fechada! Imediatamente seu semblante entristeceu-se, sua linha de visão passou da média para baixa – focando o piso de cimento áspero e amarronzado pela terra.

Sua cabeça começou a trabalhar a 277,77 metros por segundo. Mais uma vez pensou em morte – suicídio ou assalto – Zéfa anda tão deprimida, a cidade anda tão violenta. Depois pensou em separação, será que Zefá resolveu voltar para o interior, pensou. Levou a mão até a maçaneta e constatou que a porta estava trancada. Pegou a chave, abriu a porta e adentrou dolorosamente à residência.

Com algum esforço conseguiu erguer um pouco o olhar, vasculhou o cômodo – que compunha de sala e cozinha ao mesmo tempo e nada de Zéfa. Mas reparou um papel por sobre a mesa. Chegou mais perto e percebeu que tratava-se de uma carta. Ficou ainda mais preocupado, mais uma vez trabalhou em sua mente as hipóteses de suicídio ou abandono. Pegou-a com rapidez e tratou de lê-la.

Querido Tonho,

Onti eu ia pra a entrevista de emprego bastante triste e xatiada. Cheguei no predio, olhei pro alto e assustei com o tamanho e beleza dele. Todo de vidro. Me senti foi é mau com a pobreza do nosso bairro e nosso casebre. Entrei em um salão enorme, com teto alto. Devia de te uns 3 andares de tão alto que era. Me senti pequena. Passei pela recepção, tive que mostrar meu RG e tirar uma foto. Me senti como um bandido que é fichado pela polícia. Até parece que eu era alguma ameaça.

Mas o pió mesmo foi a cumplicada instrução que recebi. Tive até que pedir pra que a recepcionista me explicasse novamente, e com mais calma, pois aquilo não cabia na minha cabecinha. Fique arrasada, você não vai acreditar. Agora é assim: você passa seu crachá na catraca e uma televisãozinha, na catraca mesmo, informa qual o elevador que você tem que pegar. Você para em frente do elevador e ele para sozinho pra te pegar. Não tem butão algum pra chama. Entrei no elevador e lá dentro também não tinha botões, quase que, por instinto, sai. Mas enquanto pensava, tentando entender, a porta se fechou. Fiquei desesperada: eu sozinha dentro de um elevador que não tinha nenhum  butão pra dirigir. Mas nem acreditei quando ele parou no andar que eu tinha que ir. Sai correndo de la de dentro.

Isso tudo me deixou mais triste ainda. Era por isso que não tinha mais emprego. O elevador agora faiz tudo sozinho, tudo eletronico, tudo automatico. Eu ja tinha perdido o emprego porque as pessoas ja sabia dirigir os elevador sozinhas, mas agora nem precisa mais dirigir. Isso era dimais pra mim. Me deu uma vontade de chorar, de voltar pra casa correndo. Mas me segurei e entrei pra a entrevista.

Conversei com a Camila por mais ou menos 30 minuto e depois de contar sobre meu trabalho como ascensorista, senti vontade pra falar sobre meu sentimento em relação aos elevador moderno. Fiquei emocionada novamente, com uma vontade de chorar.  Foi quando Camila colocou a mão em meu ombro, olhou bem dentro dos meus olhos e disse:

– Josefá, você não era apenas uma ascensorista. Na verdade você recepcionava e conduzia as pessoas para onde querem ir. E me parece que fazia isso com alegria e com muito carinho. Você é muito atenciosa. Você não serve para nossa vaga de copeira, mas quero você ajudando na recepção. Quando pode começar?

Não consigo discrever o que senti, me falta palavras. Enfim alguem acreditou em mim! Respondi que poderia iniciar imediatamente. Ela respondeu que não era bem assim que as coisas funciona, que tinha documentação pra acertar, exame pra faze. Eu estava com todos os documentos – entreguei tudo pra ela e perguntei quando fazia o exame. Ela deu um belo sorriso e me levou até a recepção, me apresentou a recepcionista e onti mesmo comecei.

Cheguei em casa bem mais tarde pois fui pro  exame do médico no mesmo dia, logo depois do serviço. Quando cheguei você já tinha saido. Na verdade acho que so nos veremo no final de semana.

Estou muito muito muito feliz! Deixei essa carta pois meu celular foi roubado no onibus quando ia para a entrevista. So percebi quando quis te contar, toda feliz, sobre o emrpego. Ainda num decorei seu novo mumero de telefone por isso não consegui te ligar.

Tenha um bom dia, ou melhor uma boa noite de trabalho. Nos vemo no sabado.

Espere por seu beijo e ja aviso: será quente, safado e indecente.

Amor da sua vida.

Josefá.

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