Conto do bom samaritano

Sou mesmo um cara de sorte. Outro dia fui ao caixa eletrônico para sacar dinheiro. Eu estava muito apressado e a caminho de uma reunião com um cliente, o que favoreceu minha distração: já ia saindo do banco e deixando o cartão na máquina. Por sorte, uma boa samaritana me gritou:

– Senhor! Senhor!

Olhei para trás a vi estendendo o braço e abanando as mãos com um cartão seguro entre os dedos, dizendo:

– Senhor! Você esqueceu seu cartão na máquina.

Fiquei muito contente! Não pelo risco de ocorrer algum saque indesejado, mas sim pelo trabalho que daria para fazer outro cartão, você sabe né: cancelamento, solicitação, espera e ida até alguma agência para cadastramento de senhas.

Fiquei deveras agradecido, muito contente por evitar novos problemas.

Passados exatos 10 dias desci ao shopping, em frente ao meu apartamento, para sacar dinheiro e pagar o encanador que estava recuperando a “cagada” que fiz no banheiro. Opa, desculpe! não estou me referindo a evacuação, mas sim aquela minha velha mania de querer consertar tudo em casa, o que, normalmente, acarreta em mais problemas e custos. Mas esse não é o ponto, o ponto é que ao chegar ao caixa eletrônico de dentro do shopping, me deparei com um cartão de débito esquecido na máquina!

Peguei-o na mão e verifiquei a titularidade. Tratava-se de uma personalidade jurídica, mais especificamente de um restaurante. São tantos restaurantes na região! Sem falar nos da praça de alimentação. Poderia ser qualquer um. O nome não aludia a nenhuma rede conhecida, nem mesmo a nenhum nome que eu conhecesse daqui do bairro. Na verdade, o nome era meio estranho e só memorizei uma parte dele: “natina”. Memorizei porquê achei estranho, diferente.

Efetuei meu saque e fiquei à frente dos caixas pesquisando na internet o endereço daquela razão social: nada encontrei; pesquisei então o endereço da agência: e constatei que se tratava de uma agência próxima. Cocei a cabeça pensando como poderia fazer para devolver aquele cartão a seu proprietário, afinal, eu estava em dívida com o universo – tinha que retribuir o que me fora dado!

Em frente aos caixas há um quiosque que serve Açaí, me dirigi às funcionárias para verificar se poderia deixar o cartão com elas, deste modo, se alguém as perguntasse, a devolução poderia ser efetuada. Mas elas sugeriram que eu deixasse no “espaço cliente”, o que fazia mais sentido. Mas, dada a posição estratégica do quiosque então instrui: deixarei no “espaço cliente” e se alguém vos perguntar diga que lá está.

Sai meio contente, afinal tinha dado o meu melhor. Não é mesmo? Não! Aquilo para mim não era suficiente: eu precisava ter certeza de que tinha de fato realizado a benesse. Sai na rua em direção à minha casa pensativo, feliz apenas em parte. Feliz pelo esforço, mas com pouca certeza do reencontro entre portador e portado. Quando de repente avisto a minha frente um restaurante que continha “nativa” no nome. Era uma coincidência estranha: “natina” no cartão e “nativa” na placa da fachada. Resolvi entrar e perguntar pela razão social do estabelecimento. Questionei a caixa, que não soube dizer e me olhava como quem olha um fiscal. Mas ela imediatamente desviou o olhar a uma outra pessoa, que também se encontrava atrás do balcão, que sem nenhum esforço ou tortura enunciou o mesmo nome que o do cartão.

Contei a ela o ocorrido e a instruí a resgatá-lo junto ao “espaço cliente”. Ela sorriu, agradeceu e eu me despedi. Senti sua emoção menos intensa que a minha, mas pensei: tratava-se de pessoa jurídica e talvez nem fosse de sua responsabilidade resolver os problemas acarretados por um cartão perdido. Segui para minha casa. Agora sim: contente, realizado, quites com as obrigações das leis do carma e esperançoso pela minha próxima benesse oferecida pelo universo.

Enquanto isso tudo acontecia, o jovem funcionário, responsável pelos saques e pequenos serviços de banco, retornava ao caixa do banco do shopping desesperado a perguntar sobre o cartão que ele perdera. Estava branco, tenso – muito preocupado com sua desatenção: temia demissão. Chegou ao caixa, perguntou, procurou: e nada! Resolveu perguntar as pessoas, o que logo chamou a atenção das atendentes do Açaí. Elas explicaram a ele o que acontecera e ele tratou de correr logo até o “espaço cliente” e rapidamente recuperou o cartão.

Quando ele chegou no restaurante, sua chefe, que sabia da perda do cartão, resolveu sondá-lo para saber se o incompetente tinha pelo menos percebido o erro, e mais: se ele confessaria o deslize:

– Tudo bem lá no banco? Deu tudo certo?

Ele respondeu meio ressabiado com a “coincidência” da pergunta, e ainda branco do susto e ligeiramente trêmulo, respondeu que sim, tudo tinha transcorrido bem.

Ela insistiu:

– Tudo bem mesmo?

– Si-sim! Afirmou ele mais uma vez.

– Então me dê o dinheiro e … DEVOLVA O CARTÃO!

Uma espécie de prazer sádico aflorava da sua face através de um leve brilho no olhar e um sorrisinho maroto, de canto de boca, apresentando um pouquinho do branco dos seus dentes.

Ele simplesmente estendeu a mão e lhe entregou o dinheiro e o cartão. Deu-lhe as costas, fugindo daquela embaraçosa situação.

Ela se pôs a pensar: que aconteceu nesta tarde de verão?

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